Nosso sócio Ricardo Fenelon publicou um artigo no JOTA com o ex-Conselheiro do CNJ Henrique Ávila sobre a aplicação de convenções e tratados internacionais no Brasil, em especial no âmbito do setor aéreo.
Os autores citam alguns exemplos relacionados às Convenções de Montreal e da Cidade do Cabo para mostrar que o País não tem um bom histórico no cumprimento dos acordos que ratifica e internaliza.
Ao final propõem que seja realizado um debate técnico para verificar quem realmente perde com a insegurança jurídica.
Leia na íntegra:
Em 28 de setembro de 2006, após aproximadamente cinco anos de tramitação no Congresso Nacional, entrou em vigor no Brasil a Convenção de Montreal, que trata sobre regras relativas ao transporte aéreo internacional e, em especial, sobre a responsabilidade civil de empresas aéreas no transporte internacional de pessoas, bagagens ou cargas.
Apesar da aprovação pelo legislador brasileiro após um longo processo de internalização da norma, por mais de uma década a jurisprudência predominante no país foi no sentido de não aplicar a convenção internacional nos casos de conflitos entre passageiros e companhias aéreas.
Desde a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, em 1991, há bastante controvérsia tanto na doutrina quanto na jurisprudência sobre qual norma se aplica em casos de conflitos envolvendo contratos de transporte aéreo internacional.
De um lado, os consumeristas defendem a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), enquanto, do outro, os especialistas em Direito Aeronáutico advogam pela aplicação das convenções e tratados internacionais internalizados pelo Brasil.
Diante da divergência, em maio de 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início ao julgamento conjunto do Recurso Extraordinário (RE) 636331 e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 766618, de relatoria dos ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso.
Ambos os recursos tratam dessa antiga polêmica, qual seja: se os conflitos entre passageiros e companhias aéreas relativos a contratos de transporte aéreo internacional devem ser dirimidos considerando as convenções internacionais ou o CDC.
Os ministros relatores proferiram os votos no sentido de que, em se tratando de transporte aéreo internacional, aplicam-se os acordos internacionais sobre o tema ratificados pelo Brasil. Um dos principais argumentos foi o art. 178 da Constituição Federal, segundo o qual os acordos firmados pela União devem ser observados em se tratando da ordenação do transporte aéreo internacional.
O julgamento foi suspenso por um pedido de vista da ministra Rosa Weber até que, em maio de 2017, o STF decidiu por maioria pela prevalência das convenções internacionais em relação ao CDC, quando se tratar de transporte aéreo internacional.
Considerando que o STF decidiu pela aplicação das convenções internacionais sobre o CDC, com repercussão geral reconhecida, a decisão do STF deveria, a partir daquele momento, ser aplicada em processos semelhantes que tramitam nas instâncias inferiores. Não foi o que ocorreu. Em uma simples pesquisa é possível localizar diversas decisões judiciais posteriores aplicando o CDC.
Há menos de um ano, em junho de 2020, por exemplo, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que condenou companhia aérea ao pagamento de danos morais por extravio de bagagem em transporte internacional com base no CDC. A própria notícia publicada no portal do Tribunal tenta explicar a não aplicação da Convenção de Montreal, conforme trecho destacado abaixo:
Para 3ª Turma, dano moral a passageiro de voo internacional não se submete à Convenção de Montreal
Embora seja norma posterior ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) e constitua legislação especial em relação aos contratos de transporte aéreo internacional – com prevalência, segundo o Supremo Tribunal Federal, sobre a legislação consumerista interna –, a Convenção de Montreal não pode ser aplicada para limitar a indenização devida aos passageiros em caso de danos morais decorrentes de atraso de voo ou extravio de bagagem, tendo em vista que o tratado internacional alcança apenas as hipóteses de dano material.
Independentemente da discussão de mérito, se deveria ser aplicado o CDC, o qual prevê responsabilidade objetiva, indenização ilimitada e possui prazo prescricional de cinco anos, ou a Convenção de Montreal, com seu sistema dúplice de responsabilidade (limitada e objetiva até um valor e ilimitada e subjetiva acima desse valor) e prazo prescricional de dois anos, o que se percebe é que há bastante dificuldade no Brasil para que se aplique tratados e convenções dos quais o país é signatário.
A afirmação acima pode ser facilmente comprovada se analisarmos a aplicação de outra convenção internacional que não tem qualquer relação com o Direito do Consumidor, como a Convenção da Cidade do Cabo de 2001, que só entrou em vigor no Brasil em 16 de maio de 2013.
Um dos principais objetivos desse tratado internacional é garantir maior segurança aos credores em operações internacionais de financiamento, como por exemplo de aeronaves. Por consequência, com a redução do risco nas operações de arrendamento de aeronaves, há tendência de redução no valor dos arrendamentos, o que acaba beneficiando tanto os arrendadores, quanto as companhias aéreas.
Todavia, em março de 2019, no âmbito da discussão da recuperação judicial da Avianca Brasil, em um primeiro momento o Poder Judiciário impediu a retomada dos aviões da empresa pelos arrendadores, em contradição ao que prevê a Convenção da Cidade do Cabo para casos de inadimplência.
De fato, a incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico brasileiro sempre foi objeto de muito debate, inclusive quanto ao status da norma, se teria equiparação ou não a uma lei ordinária.
Da mesma forma, há discordância quanto às soluções para as hipóteses de conflitos entre leis. Pelos critérios clássicos como o hierárquico, o cronológico e o da especialidade há sempre uma forma de defender que uma norma tem prevalência sobre a outra, seja por ser mais recente ou mais especial, a depender da criatividade do intérprete.
Mas o fato é que, apesar das divergências doutrinárias e jurisprudenciais, no âmbito do setor aéreo, o que se percebe é que o Brasil internacionalmente não é reconhecido por cumprir os acordos internacionais que ratifica e internaliza, o que evidentemente gera ampla insegurança jurídica e coloca o nosso país, uma vez mais, em um patamar internacional abaixo do que a robustez das nossas instituições democráticas mereceria.
Não é à toa que nos últimos anos diversas empresas aéreas internacionais deixaram de operar no país e outras tantas decidiram se estabelecer em países vizinhos da América do Sul, como Argentina, Chile, Colômbia e Peru. É necessário criar um ambiente que permita um debate construtivo para saber quem realmente perde quando não há segurança jurídica. Arriscamos dizer que todos perdem, consumidores, empresas e o sistema da aviação civil no Brasil como um todo.
Fonte: JOTA
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